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O projeto ACERTO: um protocolo multimodal económico e eficaz para a América Latina


El Proyecto ACERTO: un protocolo multimodal barato y eficaz
para América Latina

The ACERTO Project: an inexpensive and effective multimodal
protocol for Latin America


José Eduardo de Aguilar-Nascimento1, Diana B. Dock-Nascimento2, Jessika Cadavid Sierra3


Recibido: 4 de junio de 2019. Aceptado para publicación: 5 de agosto de 2019.

Postado online: 9 de Novembro 2019

https://doi.org/10.35454/rncm.v3n1.018




1 Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT; Director do curso de Medicina – UNIVAG, Brasil.

2 aculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso,
UFMT, Brasil.

3 Universidad Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil; Nutricionista Dietista da Universidad de Antioquia (UDEA), Colombia.

*Correspondência: José Eduardo de Aguilar Nascimento

je.nascimentocba@gmail.com



Resumo


O projeto ACERTO é um programa multimodal de cuidados peri-operatórios. O conjunto de rotinas e prescrições do projeto ACERTO tem como base a medicina baseada em evidência em contraposição a cuidados tradicionais, muitas vezes empíricos e, ensinado a beira do leito, por gerações sucessivas de cirurgiões. Cuidados tradicionais como uso de sonda naso-gástrica, drenos abdominais, preparo pré-operatório do cólon, jejum pré-operatório de 6-8 horas são modificados no projeto com base na evidência de estudos randomizados e meta-analises. Alem disso, o projeto reforça a restrição de fluidos intravenosos e o uso de terapia nutricional no peri-operatório. A aplicação do projeto ACERTO desde 2005 modificou resultados com queda significante de dias de internação e morbidade pós-operatória em sucessivos estudos clínicos. O projeto ACERTO é de uso gratuito.

Palavras-chave: cuidados peri-operatórios, jejum pré-operatório, terapia nutricional, complicações pos-operatórias, hidratação venosa, preparo mecânico de cólon.


Resumen


El proyecto ACERTO es un programa multimodal de cuidados perioperatorios. El conjunto de rutinas y prescripciones del proyecto ACERTO tiene como fundamento la medicina basada en evidencia en contraposición con cuidados tradicionales, muchas veces empíricos y enseñados en la rutina misma por generaciones sucesivas de cirujanos. Cuidados tradicionales como el uso de sonda nasogástrica, drenajes abdominales, preparación preoperatorio del colon, ayuno preoperatorio de 6 - 8 horas son modificados en el proyecto basado en la evidencia de estudios aleatorizados y metaanálisis. Además de eso, el proyecto refuerza la restricción de fluidos intravenosos y el uso de terapia nutricional en el perioperatorio. La aplicación del proyecto ACERTO desde 2005 ha modificado resultados, mostrando reducción significativa de días de internación y morbilidad postoperatoria en sucesivos estudios clínicos. El proyecto ACERTO es de uso gratuito.

Palabras clave: cuidados perioperatorios, ayuno preoperatorio, terapia nutricional, complicaciones postoperatorias, hidratación venosa, preparación mecánica del colon.


Summary


The ACERTO project is a multimodal peri-operative care program. The set of routines and prescriptions of the ACERTO project is based on evidence-based medicine as opposed to traditional care, often empirical and taught in the same routine by successive generations of surgeons. Traditional care such as the use of naso-gastric tube, abdominal drainage, preoperative colonic preparation, preoperative fasting of 6-8 hours are modified in the project based on evidence from randomized studies and meta-analysis. In addition, the project reinforces the restriction of intravenous fluids and the use of nutritional therapy in the peri-operative. The application of the ACERTO project since 2005 has been modifying results, showing significant reduction of hospitalization days and postoperative morbidity in successive clinical studies. The ACERTO project is free to use.

Keywords: Peri-operative care; Preopera-tive fasting; Nutritional therapy; Postope-rative complications; Intravenous fluids; Preoperative colonic preparation.


Introdução


Nos últimos anos, vários estudos têm se preocupado com a recuperação do paciente cirúrgico em termos de importantes endpoints, tais como tempo de internação, morbidade e mortalidade pós-operatória. O racional para o advento desses estudos, em parte, é o desenvolvimento de estratégias que minimizem a resposta orgânica ao trauma, melhorem a qualidade do atendimento e acelerem a recuperação do paciente(1,2).

Programas multimodais ou “fast track” são um conjunto de intervenções que visam facilitar e acelerar a recuperação pós-operatória através de prescrições e cuidados modernos. Essas novas rotinas de cuidados, geralmente seguem o novo paradigma da medicina baseada em evidência. Nessa nova visão, os cuidados tradicionais, muitas vezes empíricos e transmitidos por gerações de cirurgiões, à beira do leito, são contrapostos a outras rotinas alicerçadas em estudos randomizados, controlados e em meta-análises. Alguns ensinamentos dessa ordem, tais como tempo de jejum pré-operatório, re-alimentação pós-operatória, repouso no leito, preparo mecânico do cólon, uso rotineiro de sonda naso-gástrica (SNG) e drenos, têm-se mostrado em estudos randomizados e controlados como inúteis e muitas vezes perigosos(3).


Conceito de protocolo multimodal ou fast track


O grupo ERAS (Enhanced Recovery After Surgery), composto por médicos, especialmente cirurgiões colorretais de alguns países do norte da Europa, publicou em 2005 um interessante consenso sobre cuidados peri-operatórios(4). Nesse artigo, foram apresentadas varias modificações aos cuidados tradicionais, baseados em estudos controlados e randomizados, e em meta-análises. As principais modificações apresentadas pelo grupo ERAS foram adaptadas à realidade nacional pelo projeto ACERTO e podem ser vistas na Figura 1.

Um dos objetivos dos programas multimodais é a redução do estresse cirúrgico, pela minimização da resposta orgânica ao trauma. Nesse contexto, o advento da vídeo-laparoscopia, incontestavelmente, trouxe benefícios ao cirurgião e ao paciente, de tal maneira, que muitos cirurgiões que aprenderam da maneira tradicional, passaram a abreviar a internação do paciente e não utilizar rotineiramente cuidados peri-operatórios tradicionais, tais como sonda naso-gástrica e cateter urinário. A Tabela 1 sintetiza vários princípios que podem minimizar a resposta orgânica ao trauma. A Tabela 2 mostra as principais diferenças entre um protocolo de cuidados perioperatórios tradicional e um multimodal.



Figura 1. Componentes de um programa multimodal de cuidados peri-operatórios – ACERTO (Aceleração da Recuperação Total Pós-Operatória)(5)


Tabela 1. Princípios para redução da resposta orgânica ao trauma(5)


Cirurgia mini-invasiva

Prevenção de hipotermia peri-operatória

Bebida com carboidrato 2 horas antes da operação

Nutrição peri-operatória

Otimização do uso de fluidos intravenosos

Analgesia com fármacos não opioides

Uso de procinéticos

Anestesia mista (geral + bloqueio regional)





Figura 2. Elementos do protocolo ACERTO


Os resultados iniciais com uso de protocolos multimodais foram baseados em estudos não randomizados de observação. Atualmente, existem muitos estudos randomizados e meta-análises, mostrando a consistência desses programas em auferir melhores resultados, especialmente em cirurgias colorretais(5,6). Os resultados mostram que há significativa redução de morbidade e de custos hospitalares pela adoção desses programas. Wind et al., em revisão sistemática de seis estudos randomizados e 512 pacientes, mostraram que pacientes submetidos a operações sobre o intestino grosso por protocolos fast track permaneceram hospitalizados 1,5 dias a menos (-1,56 dias, IC 95 %: 2,61 - 0,50 dias) e houve redução da morbidade pós-operatória em aproximadamente 50% (RR= 0,54, IC 95 %: 0,42 - 0,69)(5).


O protocolo ACERTO


O número de operações realizadas no mundo é muito grande. Nos EUA, aproximadamente 30 milhões de procedimentos são realizados a cada ano, consumindo vasta quantidade de recursos gastos em saúde. No Brasil, em 2017 ocorreram 11.338.039 internações no país, sendo 3.123.517 para procedimentos cirúrgicos (27,5%), com custo médio de R$ 1184,32 por internação(7). Estes dados mostram que, em termos nacionais, considerações envolvendo custos e resultados em procedimentos cirúrgicos são deveras importantes e, dessa maneira, deve haver uma preocupação dos serviços de saúde com gastos e melhoria de resultados no atendimento nesse grupo de pacientes. No Brasil, optamos por um protocolo sem custos adicionais de pagamentos de fees para plataformas que atuam em alguns lugares do mundo. Isso era mais condizente com os gastos em Saúde Pública no Brasil e creio que na América Latina.

Um ponto crucial para implementação é o conhecimento epidemiológico local dos resultados. O número de procedimentos realizados por mês e ano, a taxa de morbidade e o tempo de internação pós-operatório de um determinado hospital, por exemplo, não podem ser de presunção. Um bom sistema é auditar alguns parâmetros em doentes internados. Saber qual a média de horas de jejum pré-operatório ou o percentual, do uso rotineiro de sonda naso-gástrica. Auditorias prévias devem demonstrar os resultados do serviço e do hospital, apontar as principais operações e preferências da equipe. Essa informação tem que ser divulgada em reuniões de serviço, gráficos no centro cirúrgico, newsletter do hospital, e-mails, etc. Imaginário e realidade devem ser confrontados, e discussões a partir daí, devem produzir mudanças baseadas em fatos e não em presunções (Figura 3). Para exemplificar este ponto importante, uma auditoria no nosso serviço com o objetivo de avaliar a real quantidade de fluídos infundidos por via intravenosa em pacientes submetidos a operações de grande porte, mostrou que entre o 1º e 4° dia de pós-operatório infundiu-se 12,8 (6,4 - 17,5) L de soluções cristalóides. Desse total, 9,5 litros (74,3%) corresponderam a fluidos prescritos e 3,3 L (25,7%) a diluentes e medicações venosas. Concluiu-se que a prescrição médica não contém o real volume de fluídos cristalóides intravenosos infundido. O volume de diluentes e medicações intravenosas podem chegar a 25% da carga hídrica prescrita(8).

Dentro do protocolo ACERTO (Figura 2), o paciente logo após a internação recebe informações importantes sobre a sua operação e é instruído sobre como pode ajudar-se para um rápido retorno ao lar. A avaliação do risco nutricional e implementação da INTERNUTI (Intervenção Nutricional Imediata), se necessária, fazem parte do pré-operatório. O fluxograma da INTERNUTI pode ser visto na Figura 3.

Na rotina do protocolo ACERTO, a alta hospitalar, fica condicionada a 4 fatores: 1. o paciente de estar recebendo dieta e estar sem punção IV, 2. a dor deve estar abolida ou controlada com analgésicos orais, 3. o paciente deve estar deambulando sozinho ou com pouca ajuda, e finalmente 4. o paciente deve ter o desejo de alta. O protocolo ACERTO foi recentemente adotado pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões e pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral como diretriz de cuidados(9).


Abreviação do jejum pré-operatório


O jejum noturno pré-operatório foi instituído quando as técnicas anestésicas ainda eram rudimentares para prevenir complicações pulmonares associadas a vômitos e aspirações do conteúdo gástrico. A razão dessa rotina é garantir o esvaziamento gástrico e evitar broncoaspiração no momento da indução anestésica. A revisão de livros de texto do século passado mostra que o dogma do jejum pré-operatório de 8 - 12 horas foi instituído a partir de relato de casos de aspiração bronco-pulmonar em situações cuja indução anestésica se deu em operações de urgência e emergência. No início do século XIX, pacientes tinham a permissão de fazer uso de um pequeno copo de chá, poucas horas antes da operação. Entretanto, a conduta que se popularizou foi a de aplicar-se jejum (“nada pela boca”), a partir da meia-noite para pacientes que tivessem sua operação marcada para o período matutino, e a permissão de um leve desjejum (chá e bolachas) para pacientes que fossem ser operados no período da tarde(10). No entanto, cirurgias atrasam e o jejum pré-operatório aumenta chegando em media a 18 horas (11). Veja no Tabela 3 as principais razões do atraso de cirurgias.

Em varias circunstancias, o imaginário de uma prescrição não é efetivamente cumprido. No período anterior à implantação do Projeto ACERTO, no Hospital Universitário Júlio Müller (FCM-UFMT), o tempo preconizado para jejum pré-operatório era de oito horas. Uma auditoria realizada na implantação do protocolo ACERTO mostrou claramente que o tempo de jejum preconizado e prescrito no pré-operatório de cirurgias eletivas era muito maior chegando a 16h, em média(12). Mesmo depois da implantação do jejum de 2 horas esse tempo, em média, foi maior (4 horas). As razões para essa dilatação do período de jejum pré-operatório são o atraso das operações, a mudança de horário delas e aumento do tempo de jejum por parte do próprio paciente.

A possibilidade de uso de líquidos claros, até duas horas antes da operação, abriu precedente para alguns autores estudarem a possibilidade de que tais soluções pudessem ser enriquecidas por substratos energéticos de rápida absorção e que não interferissem com o esvaziamento gástrico. Trabalhos passaram a ser então publicados, demonstrando que o uso de uma solução de líquido enriquecida com carboidrato determinava maior satisfação, menor irritabilidade, aumento do pH gástrico e, especialmente, reduzia a resposta catabólica ao estresse cirúrgico, com consequente melhora da recuperação pós-operatória(4,12).


Tabela 2. Comparação entre o protocolo convencional e o ACERTO num paciente candidato a uma
ressecção de cólon com anastomose primária(5)


Convencional

ACERTO

Sem TN pré-operatória

TN pré-operatória 7 - 14 dias

Pouca a nenhuma explicação sobre o peri-operatório

Informação sobre o peri-operatório

Preparo de cólon

SEM preparo de cólon

SNG e drenos

SEM SNG e drenos

Jejum de 8 h

Jejum de 2 h (hidratos de carbono)

Re-alimentação no 2° - 4° dia

Re-alimentação no pós-operatório / ou primeiro dia

Soro IV até o 4° - 7° dia

Soro IV até ao 1º día




Figura 3. Fluxograma de intervenção nutricional imediata (INTERNUTI) no paciente cirúrgico candidato a operações de médio e grande porte(5).


Tabela 3. Razões que prolongam do tempo prescrito de jejum pré-operatório(5)


1. Atraso do cirurgião ou do anestesista

2. Atraso na burocracia de internação do paciente

3. Atraso da operação do 1º horário

4. “Aderência” do paciente a recomendação deixando de fazer refeições antes da operação

5. Indução anestésica prolongada

6. Re-programação da operação para 2º ou 3º horário

7. Re-programação da operação para outro período do dia


Como fundamentação básica para esta mudança de paradigma na prescrição de jejum pré-operatório, devemos considerar que a resposta orgânica ao trauma cirúrgico possa ser incrementada pela resposta metabólica ao jejum pré-operatório prolongado. Em conjunto, esses fatores contribuiriam de forma mais relevante para uma resposta orgânica majorada(13). Após algumas horas de jejum, instala-se uma resistência periférica, a insulina e os índices de insulina aumentam por feed-back. Faria et al. mostraram isso claramente em recente estudo randomizado(14). Além disso, quanto maior a resistência à insulina, maior o tempo de internação(15).

Uma revisão da Cochrane(16) identificou e analisou as evidências mais fortes em relação à diminuição do jejum pré-operatório e sua relação com complicações. Foram incluídos 22 estudos, nos quais foram alocados um total de 2.270 participantes. Não houve caso de aspiração por abreviação do jejum para 2 horas com bebida contendo carboidrato. Consistentemente, vários guidelines de sociedades anestésicas, publicados antes do estudo da Cochrane, já preconizavam líquidos claros até duas horas antes da operação (ASA 1999; NNCG 1993; AAGBI 2001) e 150 mL de líquidos claros até uma hora antes da operação com medicações orais (NNCG 1993).

Nos últimos anos, houve o desenvolvimento de novas bebidas para a abreviação do jejum pré-operatório. Bebidas contendo apenas maltodextrina, novas soluções com a adição de proteínas, amino-ácidos, anti-oxidantes, eletrólitos, oligo-elementos e vitaminas foram estudadas e estão disponíveis no mercado. A adição de proteínas ou aminoácidos melhora ainda mais a resistência insulínica, diminui a perda de massa magra e, portanto, diminui ainda mais a resposta orgânica ao trauma. A segurança do esvaziamento gástrico com uma bebida contendo carboidratos associada a glutamina ou a proteína hidrolisada ocorreu em pelo menos quatro estudos randomizados(17,18).


Restrição de fluidos intravenosos


Líquido e eletrólitos são infundidos, com a finalidade de repor as perdas ocasionadas durante o ato operatório, e para manter a homeostasia durante período de tempo em que a ingesta oral é impossível. Estas necessidades são diretamente relacionadas ao peso do paciente, porte e duração do ato operatório. Tradicionalmente, o cálculo é realizado baseado em fórmula empírica, frequentemente favorecendo uma reposição generosa(19). Com essa conduta convencional, pacientes submetidos a operações colorretais, recebem em média 3,5 - 5 litros de fluido intravenoso no dia da operação e são mantidos nos primeiros dias de recuperação cirúrgica (3 - 4 dias) com hidratação venosa, muitas vezes com “soro fisiológico”, recebendo 2 - 3 litros/dia. Essa reposição, associada à dificuldade de excreção fisiológica de sódio, de cloro e de água durante esse período, como resposta fisiológica à agressão, determinam uma retenção hídrica importante, com ganho de peso corporal em torno de 3 - 6 quilos no período pós-operatório(20,21).

Tem sido demonstrado que essa sobrecarga causa edema generalizado de tecidos, com inúmeras consequências clínicas. Há uma perturbação da função cardiopulmonar com consequente diminuição da oxigenação sanguínea e deletérias repercussões em todo o organismo. Particularmente, no tubo digestivo há edema esplâncnico, aumento da pressão intraabdominal, diminuição do fluxo mesentérico com manutenção do íleo paralítico, aumento da permeabilidade da mucosa e prejuízo do processo cicatricial.

Em um estudo multicêntrico, Brandstrup e cols(20) compararam dois regimes de reposição peri-operatória de líquidos. Concluiu-se que no grupo restrito houve redução significativa de complicações pós-operatórias (33% vs 51%); cardiopulmonar (7% vs 24%) e relacionadas com cicatrização (16% vs 31%); salientando não ter observado qualquer possível efeito adverso no regime de restrição (apesar da restrição de fluidos ter implicado em menor débito urinário, nenhum paciente evoluiu com insuficiência renal). Em 2009, foi apresentado um consenso no Reino Unido, o GIFTASUP(21) (British Consensus Guidelines on Intravenous Fluid Therapy for Adult Surgical Patients), que determina condutas para a hidratação peri-operatória. Segundo o consenso, a hidratação restritiva em cirurgias abdominais de grande porte recebe a classificação IA de evidência, para cirurgias ortopédicas de grande porte a classificação IB e o suporte para otimização do débito cardíaco em hidratação restritiva, com o uso de drogas vasoativas, IB. Fica claro que a tendência de restrição hídrica tem sido confirmada com maior força, havendo dados atuais mais determinantes dentro da evidência científica.


Re-alimentação precoce no pós-operatório


A adoção do jejum após operações com manipulação da cavidade abdominal e, em especial, após a realização de anastomoses colorretais, vem sendo ensinada a residentes de cirurgia, há muito tempo. Convencionalmente, o retorno da dieta para pacientes submetidos a anastomoses intestinais tem sido prescrita apenas após o regresso do peristaltismo, caracterizada clinicamente pelo aparecimento de ruídos hidro-aéreos e eliminação de gases(22). Com isso, o jejum pós-operatório se prolonga por um período de 2 a 5 dias e, durante esse período, o paciente fica, geralmente, recebendo apenas hidratação venosa com soluções cristalinas, com um mínimo de calorias e sem oferta de nitrogênio. Isso pode perfazer um volume exagerado de fluidos que pode chegar a 10 L
em 3 dias e provocar ganho inadequado de peso, náuseas, vômitos e maior tempo de íleo.

No entanto, esse tipo de conduta tem sido discutida, e contrariada pela literatura recente. Realmente, vários trabalhos controlados e randomizados(23,24) e meta-análises(25) demonstram que a realimentação precoce após operações, envolvendo ressecções e anastomoses intestinais, pode ser conduzida sem riscos e com potenciais benefícios aos pacientes como: alta mais precoce, menor incidência de complicações infecciosas e diminuição de custos(26). O uso de sonda naso-gástrica como rotina também não tem suporte na evidência e, pode complicar o pós-operatório.

Estudos sobre a fisiologia da motilidade do tubo digestivo têm demonstrado que o retorno ao peristaltismo normal no pós-operatório é mais rápido no intestino delgado, que retorna a sua função 4 a 8 horas após a operação. O cólon esquerdo e o estômago retornam mais lentamente, com média de 24 horas, aproximadamente. Entretanto, contrações na região antral do estômago já retornam ao normal duas horas depois do ato operatório, mantendo-se exacerbadas nas primeiras vinte horas do pós-operatório(27). Assim, do ponto de vista da motilidade, é possível a reintrodução precoce da dieta no pós-operatório de cirurgias realizadas no tubo digestivo.

Aguilar-Nascimento e Gloetzer(23) mostraram, na enfermaria do Hospital Universitário Julio Muller, que é possível realimentar pacientes após anastomoses colônicas sem risco e com diminuição do tempo de íleo e de permanência hospitalar. Em meta-análise, Lewis et al.(25) selaram de vez a antiga idéia dos “riscos” de uma realimentação precoce no pós-operatório de operações com anastomoses intestinais.

Portanto, não há nenhuma evidência para deixar pacientes em jejum no pós-operatório por dois ou mais dias. Pelo contrário, estudos randomizados e controlados mostraram repetidamente que a re-alimentação no mesmo dia da operação ou no dia seguinte é segura e confere melhores resultados. Re-alimentar precocemente o paciente diminui o tempo de internação, acelera a recuperação e é um dos pilares do projeto ACERTO.


Preparo mecânico do cólon


Uma pesquisa realizada entre 808 cirurgiões americanos, especialistas em cirurgia colorretais, realizada em 1997, apontou que 100% deles realizavam essa rotina pré-operatória(28). A constatação desse fato mostra que há grande discordância entre a evidência e a prática(29). No entanto, recente estudo publicado em 2011 mostra uma mudança de atitude por parte de cirurgiões colorretais no Reino Unido e Irlanda. Esse estudo mostrou que para operação do cólon direito e amputação abdomino-perineal do reto, poucos cirurgiões ainda prescrevem o preparo e que para o cólon esquerdo a maioria também dispensa essa prescrição(30).

O racional para o preparo mecânico do cólon é estruturado na idéia de se remover as fezes do intestino grosso, visto que a população bacteriana nas fezes é muito grande (da ordem de 1014 bactérias por grama de fezes), e, portanto, com grande carga contaminante. No entanto, as inconveniências do preparo mecânico do cólon, tais como o desconforto, a desidratação e a necessidade de reposição hídrica por via intravenosa, sempre foram consideradas como necessárias, tendo-se em conta que o objetivo maior era a minimização da morbi-mortalidade.

Vários trabalhos randomizados da era da medicina baseada em evidência e algumas meta-análises(31,32,33) têm mostrado consistentemente que o preparo mecânico pré-operatório do cólon é prescindível. Uma revisão sistemática incluindo aproximadamente 5000 casos mostrou maior incidência de infecção no sitio cirúrgico com o uso do preparo de cólon (OR = 1,40 (1,05 - 1,87), p = 0,02)(33, 34).


Conclusão


Em cirurgia geral, a técnica operatória aprimorada é essencial. No entanto, comparando-se dois pacientes bem operados, os cuidados e a prescrição no peri-operatório pode diferenciar os dois e, nesse sentido, novos cuidados chamados de fast track ou protocolos multimodais, especialmente documentados no projeto ACERTO, podem acelerar a recuperação do paciente. Na era atual, da medicina baseada em evidencia, esses protocolos, testados em estudos randomizados e controlados, tem se mostrado seguros e superiores aos cuidados tradicionais.


Agradecimentos


Departamento de Clínica Cirúrgica da UFMT.


Financiamento


JEA-N é bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).


Conflito de interesses


Não há conflito de interesses.


Declaração de autor


Todos os autores reviram o artigo e validaram a sua versão final.


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