Waitzberg DL. Rev. Nutr. Clin. Metab. 2020;3(1):116-120.
Microbiota no paciente cirúrgico do aparelho digestivo: diagnóstico e manuseio
Microbiota en el paciente quirúrgico del aparato digestivo:
diagnóstico y manejo
Microbiota in the surgical patient of the digestive system:
diagnosis and treatment
Dan L. Waitzberg1*
Recibido: 12 de mayo de 2019. Aceptado para publicación: 29 de junio de 2019.
Postado online: 11 de julho 2019
https://doi.org/10.35454/rncm.v3n1.016
1 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ganep Nutrição Humana, São Paulo, Brasil.
*Correspondencia: Dan L. Waitzberg,
dan.waitzberg@gmail.com
Resumo
Existe uma relação íntima e de duplo sentido entre o nosso microbioma e o genoma. A normobiose corresponde àquela situação em que as bactérias comensais e simbiontes estão em equilíbrio com as bactérias enteropatogênicas. Na normobiose nós beneficiamos em termos de fortalecimento da barreira intestinal, tolerância imunológica e produção de um grande número de moléculas sintetizadas pela microbiota intestinal. Na disbiose, as bactérias enteropatogénicas prevalecem sobre o simbiótico e as comensais, surge em condições adversas tais como, má alimentação, sedentarismo, consumo de tabaco e álcool, estresse físico e emocional, doenças, antibióticos e outros medicamentos. Em disbiose, aumenta a permeabilidade intestinal, podendo ocorrer a translocação de microorganismos e moléculas, originando uma resposta inflamatória cuja intensidade vai depender do tipo e intensidade da prevalência de bactérias patogénicas. Sendo perdido os benefícios da normobiose.
A composição da microbiota intestinal pode estar alterada no paciente cirúrgico do aparelho digestivo por motivos inerentes ao paciente, ao procedimento e a própria microbiota. Intervenções com prebióticos, probióticos e simbióticos podem ser úteis na redução da morbidade pós-operatória. Com o enorme desenvolvimento do conhecimento nessa área, o cirurgião, conhecendo as alterações e a modulação da microbiota e de sua metagenômica, poderá atuar beneficiando seus pacientes.
Palavras-chave:microbiota, cirurgia, probióticos.
Resumen
Existe una relación íntima y de doble vía entre nuestro microbioma y el genoma. La normobiosis corresponde a aquella situación en la que las bacterias comensales y simbiontes se encuentran en equilibrio con las enteropatogénicas. En la normobiosis nos beneficiamos en términos de reforzamiento de la barrera intestinal, tolerancia inmunológica y de la producción de un enorme número de moléculas sintetizadas por la microbiota intestinal. La disbiosis, donde prevalecen las bacterias enteropatogénicas sobre las simbióticas y comensales se relaciona con condiciones adversas, como dieta inadecuada, sedentarismo, consumo de tabaco y alcohol, estrés físico y emocional, enfermedades, uso de antibióticos y otros medicamentos. En la disbiosis, aumenta la permeabilidad intestinal, puede ocurrir traslocación de microorganismos y moléculas inadecuadas y se establece una respuesta inflamatoria cuya intensidad puede depender del tipo e intensidad de la prevalencia de bacterias patogénicas. Con eso se pierde el beneficio de la normobiosis.
La composición de la microbiota intestinal puede estar alterada en el paciente quirúrgico del aparato digestivo por razones inherentes al paciente, al procedimiento y a la propia microbiota. Las intervenciones con prebióticos, probióticos y simbióticos pueden ser útiles en la reducción de la morbilidad postoperatoria. Con el enorme desarrollo de los conocimientos en esta área, el cirujano, al conocer las alteraciones y la modulación de la microbiota y su metagenómica, podrá beneficiar, en mucho, a sus pacientes.
Palabras clave: microbiota, cirugía, probióticos.
Summary
There is an intimate and two-way relationship between our microbiome and the genome. The normobiosis corresponds to the situation in which the commensal and symbiotic bacteria are in balance with the enteropathogenic bacteria. In normobiosis we benefit in terms of strengthening the intestinal barrier, immunological tolerance and the production of a huge number of molecules synthesized by the intestinal microbiota. The dysbiosis, where the enteropathogenic bacteria prevail over the symbiotic and commensal, is related to adverse conditions, such as inadequate diet, sedentary lifestyle, tobacco and alcohol consumption, physical and emotional stress, diseases, use of antibiotics and other medications. In dysbiosis, intestinal permeability increases, translocation of microorganisms and inappropriate molecules may occur and an inflammatory response is established whose intensity may depend on the type and intensity of the prevalence of the pathogenic bacteria. With this the benefit of normobiosis is lost.
The composition of the intestinal microbiota may be altered in the surgical patient of the digestive system for reasons inherent to the patient, the surgical procedure and the microbiota itself. Interventions with prebiotics, probiotics and symbiotics may be useful in reducing postoperative morbidity. With the enormous development of knowledge in this area, the surgeon, knowing the alterations and the modulation of the microbiota and its metagenomics, will be able to greatly benefit his patients.
Keywords: Microbiota; Surgery; Probiotics.
Introdução
A aplicação de técnicas de sequenciamento genético para avaliar a composição do microbioma humano, promoveu avanço extraordinário na compreensão das relações íntimas e de duplo sentido entre nosso microbioma e genoma(1).
O intestino, em especial o grosso, abriga a maior quantidade de bactérias de nosso microbioma que, interagem conosco na dependência da dieta, estilo de vida e genética(1).
Esta interação se aplica ao próprio intestino, mas também tem repercussão sistêmica, sob a forma de eixos que envolvem o intestino e a sua microbiota e o fígado, pâncreas, cérebro, pulmão, osso, e os sistemas imunológico e endócrino entre outros(2).
Em condições conviviais adequadas temos a situação de normobiose, onde bactérias comensais e simbiontes encontram-se em equilíbrio com as enteropatogênicas. Na normobiose nós beneficiamos em termos de reforço da barreira intestinal, tolerância imunológica e da produção de um enorme número de moléculas sintetizadas pela microbiota intestinal(2).
No entanto, em condições adversas, como dieta inadequada, sedentarismo, uso de tabaco e álcool, estresse físico e emocional, enfermidades, uso de antibióticos e outros medicamentos, entre outros condicionantes, podemos encontrar a situação de disbiose, onde prevalecem as bactérias enteropatogênicas sobre as simbióticas e comensais. Na disbiose, aumenta a permeabilidade intestinal, pode ocorrer translocação de microrganismos e moléculas inadequadas e se estabelece uma resposta inflamatória cuja intensidade pode depender do tipo e intensidade da prevalência de bactérias patogênicas. Com isso, perdemos os benefícios da normobiose(3).
Na prática, a composição da microbiota intestinal pode ser obtida pelo sequenciamento do gene 16S rRNA. A amostra fecal, tem o seu DNA extraído, limpo de produtos contaminantes, e sequenciado nas suas regiões hipervariáveis deste gene. Após a detecção das sequencias realiza-se a montagem e análise dos dados, o que permite taxonomisar as bactérias em filo, classe, ordem, família, gênero e espécie (em torno de 50%).
O maior conhecimento da composição da microbiota bacteriana intestinal permitiu estabelecer associações entre distintas assinaturas microbiológicas na saúde e na doença. A adição da metabolômica – análise dos metabólitos – permitiu identificar os milhares de pequenas moléculas produzidas pelas bactérias intestinais, as quais interagem com nosso metabolismo e genes. A junção do metaboloma bacteriano com o nosso pode ser entendida como o metaboloma sistêmico. Com isso se progrediu no entendimento de mecanismos pelos quais a microbiota intestinal interage com o hospedeiro em diferentes condições de saúde e doença(4).
No período pré-operatório, por exemplo, observou-se que a microbiota intestinal está alterada em pacientes com câncer de cólon. Verificou-se aumento da diversidade microbiana na mucosa e abundância diferencial de taxas bacterianas específicas quando comparado com indivíduos controles sem câncer. Microrganismos patógenos associados à boca estão super-representados em tumores de cólon e tendem a ocorrer simultaneamente. Salienta-se a maior presença de Peptostreptococcus, na mucosa intestinal e fezes, que poderá vir a ser um biomarcador de câncer colorretal(5).
Conhecer e modular a microbiota intestinal pode ajudar a reduzir riscos ou contribuir para alterar o curso clínico de algumas enfermidades(6).
O doente cirúrgico, em particular é distinto, porque para o tratamento de sua enfermidade vai sofrer um trauma anestésico-cirúrgico cuja evolução desfavorável pode ser atribuída a alterações na microbiota intestinal. Admite-se que, em condições normais a microbiota intestinal contribui para resistência contra microrganismos patogênicos. Mas o estresse fisiológico da lesão cirúrgica sobre o trato gastrintestinal pode modificar a abundância, e função da microbiota intestinal em um indivíduo já enfermo(6).
Pouco se sabe, ainda, sobre a condição da microbiota no período pós-operatório, mas é possível que, em consequência do trauma, as bactérias intestinais possam se tornar mais virulentas e contribuir para o desenvolvimento de complicações cirúrgicas. As perturbações fisiológicas do estresse cirúrgico em associação com limpeza intestinal do colón, uso profilático de antibióticos, tipo e duração da intervenção cirúrgica, hipóxia, e falta de nutrientes na luz intestinal podem modificar o equilíbrio microbiano intestinal. Em particular a limpeza exaustiva do cólon está associada a redução da camada de muco, diminuição da produção de ácidos graxos de cadeia curta, modificação do pH intraluminal e aumento de Proteobactérias(6).
Existem fatores associados ao hospedeiro no período intra-operatório como a condição de isquemia e reperfusão, e presença de catecolaminas em função da resposta orgânica ao trauma. No intestino pode ocorrer diminuição da produção de muco, e diferentes consequências do manuseio, ressecção e restituição epitelial perante as anastomoses digestivas(7).
Experimentalmente observou-se que, mesmo quando transitória, a isquemia durante a anastomose intestinal reduz a quantidade de muco intestinal(8).
A isquemia intestinal também pode ativar as substâncias adenosina e dinorfina que, por sua vez, são pressentidas pelas bactérias por meio de sensores tipo sensum quorum. Neste caso a Pseudomonas aeruginosa se converte em um fenótipo mais agressivo. Assim, aumenta sua atividade de degradação de colágeno e promove maior permeabilidade intestinal nas junções espessas das células epiteliais intestinais.
Alguns medicamentos também podem contribuir para modificar o comportamento de bactérias. Um exemplo é a morfina que modifica negativamente o fenótipo da P. aeruginosa para degradar muco e reduzir a integridade epitelial(9).
Ainda, solutos químicos, produzidos durante a feitura da anastomose intestinal, atraem micróbios e células imunes para o sítio, e enviam sinais que induzem mudanças fenotípicas em Pseudomonas e Enterococcus(9).
Em condições de difícil dissecção, por exemplo, para a remoção de canceres pode ocorrer perda sanguínea que exija transfusão e maior tempo intra-operatório. Isto pode promover a liberação de sinais compensatórios no hospedeiro com manifestação local na área operatória. A microbiota local é capaz de captar estes sinais, e processá-los de modo a aumentar a sua capacidade de aderência ao tecido e aumentar sua produção de colagenase. Em etapa subsequente esta modificação da microbiota pode estar associada com a deiscência mediada por bactérias(10).
As bactérias Enterococcus faecalis, muito prevalentes em anastomose intestinal, produzem a enzima gelatinase, que degrada colágeno e ativa metaloproteinases de matriz intestinal, capazes de degradar colágeno e contribuir para a deiscência da anastomose(11).
Como os cirurgiões do aparelho digestivo poderiam auxiliar a reduzir a presença de uma disbiose nos seus pacientes?
No período pré-operatório poderíamos considerar evitar o preparo de cólon, quando possível, e refinar o uso de antibióticos profiláticos por suas consequências prejudiciais para a microbiota residente.
No período intra-operatório manter sempre técnica cirúrgica apurada, evitar sangramentos e transfusões sanguíneas, manipular os tecidos com delicadeza, executar anastomoses digestivas dentro do maior padrão técnico e optar, sempre que possível, por vias de acesso menos traumáticos e de menor impacto inflamatório.
Dentre as distintas possibilidades de se modificar a composição da microbiota intestinal destacam-se os prebióticos, probióticos e simbióticos, cujo consumo tem aumentado exponencialmente na última década.
Os probióticos são definidos pela FAO/WHO como organismos vivos, que ingeridos na quantidade adequada, conferem benefícios para a saúde do hospedeiro(12).
No Brasil, probióticos, em geral, estão incluídos, pela ANVISA, na categoria de alimentos. Dentre os mecanismos de ação dos probióticos podemos citar: competição por nutrição; bioconversão de nutrientes, por exemplo, a conversão de açúcar em ácido lático, torna o ambiente intestinal inóspito para bactérias patogênicas que preferem meios mais alcalinos; produção de substratos, entre eles, vitaminas B e K e ácidos graxos de cadeia curta; antagonismo direto pela produção de substancias bactericidas (bacteriocinas); exclusão competitiva; redução de inflamação e promoção de tolerância imunológica e modulação dos sistema imune.
É de suma importância conhecer a espécie e a cepa de cada probiótico que se pretende utilizar, uma vez que probióticos de mesmo gênero, mas de espécies diferentes, estão associados a distintos efeitos no organismo humano. A cepa garante a segurança do probiótico e a obtenção do efeito alegado.
Em cirurgia as bases fisiopatológicas e clínicas para uso de probióticos encontram-se descritas na Tabela 1.
Tabela 1. Bases fisiopatológicas e clínicas para o uso de probióticos em cirurgia
Bases Fisiopatológicas |
Bases Clínicas |
Melhora a disbiose intestinal |
Redução da incidência de complicações pós-operatórias |
Reforça a barreira intestinal com redução da permeabilidade intestinal |
Melhora da qualidade de vida |
Modulação do sistema imunológico |
Redução da necessidade de antibioticoterapia |
Tem efeitos sistêmicos favoráveis |
Redução do tempo de hospitalização |
Potencial redução da deiscência da anastomose |
|
Potencial redução de risco de recidiva local do câncer |
A oferta de probióticos (Bifidobacterium lactis Bl-04, e Lactobacillus acidophilus NCFM) no pré-operatório de pacientes com câncer colorretal modificou a assinatura microbiana tipicamente associada. Ocorreu enriquecimento de bactérias produtoras de butirato no tecido intestinal. Este estudo sugere que a disbiose microbiana do câncer colorretal pode ser manipulada por probióticos(5).
Prebióticos alimentares foram definidos pela Associação Científica Internacional de Probióticos e Prebióticos (ISAPP) em ingredientes seletivamente fermentados, que resultam em alterações específicas na composição e/ou atividade da microbiota gastrintestinal, e proporcionam benefícios para a saúde do hospedeiro(13).
Dentre eles se destacam os frutooligossacarídeos (FOS) que podem promover crescimento de bifidobactérias e lactobacilos benéficos no cólon.
Simbióticos consistem em produtos que combinam em uma mesma formulação os alimentos prebióticos e probióticos. Um exemplo, disponível no Brasil, é a mistura de FOS com Lactobacillus acidophilus, Lactobacillus paracasei, Lactobacillus rhamnosus e Bifidobacterium lactis.
Esta formulação de simbiótico foi estudada, entre nós, no pré-operatório de cirurgia do câncer colo retal. De fato, em estudo duplo-cego, aleatório e randomizado, 73 pacientes candidatos a cirurgia para remoção de câncer colo retal, foram separados em grupo controle e simbiótico. O último teve consumo de dois sachês do simbiótico, no período pré-operatório por 7 dias. Houve associação com menores níveis de marcadores inflamatórios, menor taxa de complicações cirúrgicas, menor uso de antibióticos, menor tempo de hospitalização e ausência de mortalidade comparado ao grupo placebo(14).
O uso de probióticos e simbióticos em cirurgia eletiva foi avaliado por uma metanálise(15) que verificou a existencia de menos infecções, menos antibioticoterapia e menos sepsis pós-operatória com seu uso e consequentemente menos dias de internação hospitalar.
Em resumo, a composição da microbiota intestinal pode estar alterada no doente cirúrgico do aparelho digestivo por razões inerentes ao paciente, ao procedimento cirúrgico e á própria microbiota.
Intervenções com prebióticos, probióticos e simbióticos poderão ser úteis para redução de morbidade pós-operatória.
Com o enorme desenvolvimento dos conhecimentos nesta área, o cirurgião, em muito poderá beneficiar seus pacientes, ao conhecer as alterações e a modulação da microbiota e sua metagenômica.
Financiamento
Este artigo não tem financiamento.
Conflito de interesses
O autor declara não haver conflito de interesses.
Referências bibliográficas